sábado, 13 de março de 2010

D'you reckon that they do it for a joke?

(O dentista está sentado num banco de correr a cantarolar uma música triste. Ouve-se: "despair to the pint where they provoke...")
(A fada entra em cena. Pousa o alicate no chão, ajeita o cabelo e senta-se ao lado do dentista cabisbaixo.)

Fada dos Dentes: Why so sad?
Sr. Dentista: Ouve lá estás armada em Joker?
FD: Sabes bem que o meu humor não tende tanto assim para o sadismo. Conta-me lá o que te perturba?
Sr. D: Ando farto.
FD: Farto de quê?
Sr. D: Desta profissão, isto não é para mim.
FD: És um doutorado, tens que te restringir ao pograma. No pograma não vêm incluídas lamuriações. Queres que te amostre como ultrapassar a fossa.
Sr. D: HUN?!
FD: Esquece, divaguei à grande agora.
Sr. D: Estou mesmo farto, para mim já não dá. Sinto-me morto de há uns tempos para cá.
FD: Aaah, então é daí que vem o cheiro.
Sr. D: Não, o cheiro é do dente podre que tens no fundo do saco há coisa de três meses.
FD: Ah, pois...sim. Bem, recuso-me a enfiar a mão no fundo do saco. Corro risco de sair com um coto.
Sr. D: Estou exausto. Farto. Saturado disto até ao tutano.
FD: Porquê?! Vá láá, não é assim tão mau e fazes montes de dinheiro. Põe lá um sorrisinho nessa carinha, para eu apreciar a simetria.
Sr. D: Não se consegue ter uma conversa contigo. Palavra de honra. Se é para vires com esse positivismo fatela ficas calada.
FD: Sabes qual é o teu problema? Barriguinha cheia. Daqui a nada dá-te a vontade e passa-te a crise existencial.
Sr. D: O teu cinismo requentado enoja-me.
FD: Oi, não te armes em engraçadinho comigo que eu não te papo os grupos.
Sr. D: Ah! Se não fosses tão pequena, juro que te batia. Estou metido nesta merda por tua causa.

(Silêncio)


(A fada levanta-se e espreguiça-se. Aproxima-se da beira do palco e salta. O dentista levanta-se de repente atrás dela. As luzes diminuem progressivamente até só ser possível vê-lo no centro do palco.)

Sr. Da: Não, espera! Volta, porra!...Inacreditável. Nem para me ouvires quando eu preciso. Se eu soubesse o que sei hoje...se eu soubesse o que sei hoje nunca me teria enfiado neste lodo. E a culpa é tua fada de um raio, com as tuas falinhas mansas: "Vais melhorar os sorrisos do mundo!" (O dentista começa a rir-se. Continua.) Às vezes quando estou sozinho ainda me imagino como um filósofo, um arquitecto, até de magistrado me vejo. Porquê que tem de ser sempre uma coisa ou outra. É que eu escolhi esta uma coisa e parece que a outra que deixei de parte é um mundo inteiro de possibilidades. Nasci mesmo para extrair, limpar, pôr próteses e ter estas dores no dedo mindinho? Não posso acreditar nisto. Tem de existir algo mais para além desta amostra grátis de vida. FADA! Fada desgraçada, só me estorvas de qualquer maneira. Volta para o buraco de onde saíste. Tu e os teus pós podem ir morrer longe.

(As luzes aumentam, e a fada aparece atrás do dentista no lado esquerdo do palco. Aproxima-se deste com passos largos.)

FD: Escuta lá, ó meu vendido da merda, já estivemos a falar melhor. Que espécie de piada de mau gosto é essa de te pores a imaginar que és filósofo? Não te chega os que já há? Aliás, mesmo que queiras ser um agora, aviso-te já que já ficaram com os nomes porreiro todos. Mas se queres escrever o Simpósio do José António estás à vontade.
Sr. D: Sempre graciosa e elegante. Onde foste?
FD: Deves ter muito a ver com isso.
Sr. D: Bem, se é para ir a mal, vamos a mal. É o seguinte, eu vou-me pôr é na alheta. Livrar-me deste consultório, sabes? Quero fazer algo arriscado. Vou vender esta choça, ou transformar isto num spa, eu sei lá. Só sei que dentária para mim já deu o que tinha a dar. Portanto trata de arranjar um sítio novo para arrochares.
FD: É...como é que é isso? Quer-me parecer que perdi um capítulo crucial deste romance...

(O ex-dentista acende um cigarro. Dá várias baforadas prolongadas sob o olhar atento da fada.)

FD: Isso faz-te um mal terrível aos dentes.
Sr. Ex-D: Sim, mas ainda não se nota. De qualquer forma acho que o pior são mesmo as mutações genéticas. (Faz arcos com o fumo.)
FD: Que é que eu vou fazer sem ti?
Sr. Ex-D: Faz muita diferença o que fazes com ou sem mim?
FD: Depende bastante da perspectiva.
Sr. Ex-D: Arranja um caloirinho e sussura-lhe sweet nothings ao ouvido como fizeste comigo. Pode ser que resulte.
FD: Hmm, e tu que é que vais fazer sem mim?
Sr. Ex-D: (Apaga o cigarro no chão.) Para começar, ler um pouco de Nietzche. O meu alemão está terrivelmente enferrujado.
FD: E depois?
Sr. Ex-D: Depois? (Ri-se e dirige-se para a saída direita do palco. Perto da saída, vira-se para trás.) Depois, morro feliz.

(As luzes apagam-se. A cortina desce)